O Cardeal Jean-Claude Hollerich é Arcebispo do Luxemburgo desde 2011. Presidente da Comissão de Conferências de Bispos da União Europeia, foi nomeado pelo Papa como relator geral do importante Sínodo dos Bispos de 2023. Falamos com o cardeal sobre este processo e outras questões da Igreja.

O cardeal Hollerich é o relator geral do próximo Sínodo dos Bispos. O que é que isso significa?

Já fui nomeado antes do próprio Sínodo começar, o que significa que o meu trabalho começou a 9 e 10 de Outubro de 2021. Assisto regularmente a muitas reuniões, maioritariamente pelo Zoom, do Secretariado Geral do Sínodo, de todas as comissões – a teológica, a metodológica, de espiritualidade e de comunicação. Tivemos uma reunião de todas estas comissões juntas, que foi muito frutífera, e o próximo grande trabalho será em Setembro, quando chegarem as respostas das conferências episcopais, porque precisamos de preparar o texto, o Instrumentum laboris, para a fase continental. Também estou em constante contacto com o cardeal Grech, o secretário do Sínodo. É um trabalho fascinante. Dá para sentir um pouco o pulso da Igreja. Estou muito grato que o Santo Padre me tenha nomeado. Vai ser muito trabalho, mas isso é normal. Estou bastante contente em fazê-lo.

Terá que preparar um texto para a fase continental, um texto para a Assembleia do Sínodo propriamente dita e depois um relatório sobre o Sínodo, certo?

Exacto, e o último texto é preparado durante o Sínodo, de alguma forma. Primeiro há um Instrumentum laboris e depois, com todas as comissões e sessões no Sínodo, o texto será, espero, alterado, para depois ser votado no fim da Assembleia. Mas não é apenas o meu trabalho. São precisos especialistas, são preciso teólogos e muita mais gente, por isso é um trabalho de equipa, um trabalho sinodal.

Tem alguma ideia do que é que vai estar escrito em qualquer um desses textos?

Não, porque seria errado se tivesse uma ideia. Eu tenho que ouvir o que o povo de Deus diz. Seria errado ter um ‘molde’ na minha mente, ou os meus objectivos para o Sínodo. Essa não é a minha função. Eu estou lá para ouvir o santo povo de Deus. Até nas comissões que temos… É importante que os teólogos reflictam sobre sinodalidade, e eles fazem-no. Provavelmente precisamos de muitas teologias da sinodalidade. Mas o meu papel não é definir uma teologia como a que devemos seguir, a minha missão é ouvir as pessoas.

Considera esta fase diocesana, que ainda decorre, como um passo importante para revitalizar o catolicismo no mundo ocidental?

Eu acho que é muito importante. É baseada no Concílio Vaticano II, e o Papa quer mesmo implementar esse Concílio, que diz muito sobre colegialidade – complementando o Concílio Vaticano I, que foi sobre o primado do Papa. O Segundo Concílio também falou sobre o povo de Deus, mas não foi muito assumido. Agora temos que pensar que o primado do Santo Padre e a colegialidade dos bispos têm que ser exercidos dentro do quadro da sinodalidade. Isso é muito importante. Pessoalmente – não relacionado com o meu trabalho no Sínodo –, estou convencido que estamos numa quebra da civilização.

Eu gosto de estar com jovens, e tenho que os ouvir. O que é importante, quais são os seus sonhos, os seus medos, os seus valores, e o que é importante para eles dentro do cristianismo… É muito importante ouvi-los porque, como bispo, algumas vezes, caímos na tentação de estarmos apenas rodeados de conselheiros, que repetem sempre as mesmas coisas. E fica-se longe da realidade. Portanto é preciso fazer um esforço para estar em contacto com os jovens. Antes de ser bispo era professor na universidade. Os jovens já estão no ano 0,2 da digitalização, mas na minha idade, estamos no ano zero. Isso muda muitas coisas. Primeiro, a compreensão de textos. Eu vejo os jovens com muitos problemas a ler textos com frases complexas, e os textos curtos são mais importantes que o textos longos. Toda a nossa tradição, todos os textos teológicos podem não ser percebidos no futuro. As imagens serão ainda mais importantes. Quando se vê a importância dos influencers, podemos ver um pouco de como esse novo mundo vai ser. Vai ser uma mudança tremenda, mas a Igreja tem que ser renovada de forma a proclamar o Evangelho para as gerações vindouras. Eu notei, quando era missionário no Japão, que só se pode evangelizar quando se tem uma atitude positiva quanto à tua cultura e civilização. Seria um perigo considerar a nova civilização que está a nascer como uma inimiga do cristianismo. Deus está presente na nova era que está a chegar, e temos que O encontrar. Mas isso não é algo que um bispo possa fazer na sua pequena capela, é algo que o povo de Deus vive. Todo o povo de Deus tem que avançar, ou pelo menos espero. Acho que tal Igreja é capaz de reagir e mudar a sua linguagem e estilo muito mais do que uma Igreja em pirâmide, que é muito inflexível. Precisamos de muita flexibilidade e de discernimento, porque temos que ver onde Deus está presente nesta nova civilização.

Considera esta uma altura crítica para a Igreja, então? Corre-se o risco de irrelevância se não houver modernização da evangelização e uma incorporação da sinodalidade?

Acho que sim. Se eu olhar para a realidade da Igreja na Europa, é esse o caso. O número de pessoas que são a Igreja está a descer. Pela primeira vez na história recente da Alemanha, o número de protestantes e católicos juntos é menor que 50% da população. Essa tendência existe em todo o lado. Nós vamos tornarmo-nos uma Igreja de minoria, mas não tenho medo disso. Jesus nunca disse que devemos ser a maioria, influenciar a política e por aí adiante. Mas tem que ser uma minoria viva, cheia de vida e de esperança. Ainda temos uma Igreja de serviços, onde se recebem os sacramentos como um serviço, depois de fazer determinadas coisas pré-definidas. Mas a Igreja é uma comunidade viva. Tenho a certeza que uma Igreja assim vai inspirar a sociedade, porque as minorias podem ser muito influentes numa sociedade. Mas temos que mudar. Se eu participasse na maratona, eu teria que perder algum peso, e talvez a Igreja tenha que perder algum peso para estar novamente em forma.

Como é que podemos construir pontes com quem defende posições diametralmente opostas aos ensinamentos da Igreja?

Tem que se ser inspirado pelo Evangelho. Se formos inspirados pelo Espírito Santo, temos que assumir a mesma atitude que Cristo tinha. Cristo não tinha problemas em aproximar-se dos pecadores, dos colaboradores com o Império Romano, dos corruptos… Até chamou alguns deles para serem seus discípulos. Nós precisamos de grande liberdade espiritual e de grande abertura. Jesus não era o inimigo de ninguém, e nós por vezes consideramos que temos inimigos. Se eu ouvir o discurso dentro da Igreja, muitos grupos de políticos são considerados inimigos. Se temos os olhos da fé, temos que ver pessoas que foram criadas por Deus, que são amadas por Deus, que não partilham as nossas crenças. Mas são amadas por Deus na mesma. E a nossa atitude tem que expressar esse amor de Deus.

Eu pude sentir, como presidente da COMECE, que algumas vezes tinha muito bons contactos com políticos que não são católicos de todo, e que são considerados inimigos da Igreja. Porém, quando falávamos de direitos humanos, quando falávamos de questões sociais, de alterações climáticas, notávamos que as nossas posições são muito próximas, e que podemos trabalhar juntos por um melhor futuro para a humanidade. Este é o ensinamento da Fratelli tutti, que somos todos irmãos. Temos que parar de ver as pessoas como inimigas. Elas podem-nos considerar inimigos, mas não devemos entrar nesse jogo, e também é importante que as pessoas marginalizadas pela sociedade, pela política e até pela Igreja sejam colocadas no centro pelo amor de Deus por elas. Nós devemos ter o mesmo apreço por estas pessoas.

Um exercício a fazer durante este Sínodo é ter as pessoas nas margens a expressar as opiniões delas. Nós podemos aprender ao ouvi-las. Ouvir as pessoas na margem não é condescendente, mas é algo de que precisamos, porque o Espírito Santo também está a trabalhar através deles. Este momento do Espírito Santo é muito importante nas teologias da sinodalidade. Devemos ver o Espírito Santo no mundo e nos grupos marginalizados.

Algumas pessoas podem considerar que ouvir pontos de vista diferentes é aceitar uma derrota e não defender aquilo em que acreditam. Como é que o Evangelho nos ensina a equilibrar as duas coisas?

Não acho que estejamos cá para defender a fé da Igreja. Estamos cá para proclamar Cristo e o Evangelho. Essa é a nossa primeira tarefa. Dentro disso, por vezes é preciso defender a Igreja e os ensinamentos dela, portanto, não me oponho totalmente a isso, mas tem que ser visto como um todo, como parte de algo mais importante do que fazer apenas isso. Vê-se o mesmo na reforma da Cúria, onde coloca em primeiro lugar a evangelização, porque essa é a missão da Igreja e todas as outras coisas estão relacionadas.

Nós temos uma visão dinâmica do cristianismo, não uma visão estática. O povo de Deus está a caminhar pela vida e Cristo é o centro. É a rua e o destino da caminhada. Se caminharmos com Cristo, alguém vai estar do lado direito e alguém vai estar do lado esquerdo. Isso é normal. Ou seja, é normal que na Igreja tenhamos algumas pessoas mais à direita e algumas pessoas mais à esquerda. Se Cristo for o centro, não há problema nenhum, faz parte da vida. Mas se Cristo não for o centro, a esquerda torna-se mais esquerda e a direita torna-se mais direita, e perdemos a unidade da Igreja. Para isso não acontecer, temos que estar centrados em Cristo e ouvir o Espírito.

Porque é que a Igreja tem demorado tanto tempo a adoptar os ensinamentos do Concílio Vaticano II?

Foi assim com todos os concílios. O Concílio de Trento demorou muito mais a ser implementado. A reforma litúrgica desse concílio apenas foi concretizada entre 100 a 200 anos depois. Na verdade, olhando para a história da Igreja, trata-se de um período de tempo curto relativamente ao Vaticano II. Talvez porque os nossos tempos são mais rápidos, que reagimos mais rápido do que os nossos antepassados. Às vezes, é preciso tempo para assimilar novas ideias, elas são aceites a um nível superficial mas têm que se tornar parte da fé. Não apenas fazer parte das ideias, mas da fé vivida na Igreja.

A Igreja vai alguma vez conseguir ultrapassar os escândalos de abusos sexuais e recuperar a confiança que foi perdendo?

Sim. Mas primeiro precisamos de humildade. Tínhamos uma visão da Igreja em que o clero parecia perfeito, parecia que tinha as respostas a todas as perguntas. Agora sabemos que não só não temos todas as respostas, mas que havia pecado no seio do clero. Os abusos sexuais são terríveis. Tivemos recentemente uma peregrinação à Catedral do Luxemburgo, e claro que havia muitas crianças. Quando vejo como as crianças olham para mim, percebo que sou, para elas, um amigo, que represento Deus. Percebo que olham para mim cheias de confiança nos olhos. Usar esta confiança para uma satisfação sexual criminosa é do pior que pode acontecer.

Acho que os abusos sexuais na Igreja são piores do que no resto da sociedade, porque as pessoas olham para as pessoas da Igreja como aqueles que falam por Deus. Temos que nos limpar, sem hesitação. Temos que ser transparentes. Se conseguirmos isso, vamos recuperar a confiança, mas a Igreja será diferente.

Eu também sou presidente da Coetus Internationalis Ministrantium, onde se incluem os acólitos e acólitas da Europa. Nenhum padre no Luxemburgo faria hoje alguma actividade com um grupo sem pedir a ajuda de uma mãe ou pai. Isso é bom, não é negativo. Já é um exemplo de uma Igreja sinodal, em que o padre não é o único a trabalhar, apesar de ter as suas funções. Mas vamos sofrer. Se as conferências episcopais não tiverem sucesso em ‘pôr ordem’ rapidamente, vai ser um processo terrível e longo para a Igreja.

Na França, uma comissão produziu um relatório que escandalizou. Quando soube dos números, não acreditava. Mas ao ler o relatório e ver a metodologia, percebi que estão provavelmente certos. Que vergonha para nós. Mas é bom que tenha sido publicado. Na Alemanha, cada diocese está a fazer o seu relatório. Vai demorar anos, e durante anos os jornais vão estar cheios de escândalos. No Luxemburgo, todos os candidatos à ordenação – seja sacerdotal, seja o diaconado permanente –, tem que fazer oito testes diferentes sobre pedofilia. Certamente não é agradável, mas podem dizer que tudo o que é possível foi feito. Não se faz o mesmo no desporto, por exemplo, por isso a Igreja está mais avançada aí. Temos sessões obrigatórias para todas as pessoas a trabalhar para a Igreja, sejam padres ou leigos, sobre como detectar abusos sexuais, perceber os comportamentos. Temos que fazer todos os possíveis.

Acho que, ainda assim, vai continuar a acontecer, porque não podemos erradicar a possibilidade do mal. Mas será muito menos frequente, e podemos dizer que fizemos todos os possíveis para não se repetir. Quando conheço vítimas – no Luxemburgo, a maioria já é mais velha –, eu choro, porque toda a vida deles tem sido um trauma, e têm estado em sofrimento por causa de pessoas que proclamam o Evangelho de Deus. Temos que corrigir isto e temos que o fazer rápido.

Abordou a formação de padres e diáconos. A Igreja precisa de mudar a abordagem à sexualidade das pessoas, incluindo padres e membros das ordens religiosas? Isso é um factor nesta questão?

Eu acho que sim. Agora sabemos que somos todos seres sexuais. Quando abençoamos matrimónios, consideramos a sexualidade algo importante e belo. Se eu viver o meu celibato, não é porque a sexualidade é má, mas porque quero renunciar, pelo Reino de Deus, a algo valioso na vida. Temos que ter uma atitude muito positiva em relação à sexualidade. Às vezes somos tão rigorosos que as pessoas têm que se esconder se não seguirem totalmente os ensinamentos da Igreja. Penso que devemos ser uma Igreja que as pessoas têm necessidades sexuais, que podem falar sobre isso, que não são condenadas, e que a Igreja está presente para as ajudar. Quando um padre tem problemas com a sua sexualidade, deve ser capaz de falar com alguém sobre isso, e não ser condenado, mas aceite como pessoa. E queremos ajudar, queremos ajudar o padre a viver o celibato alegremente. Nos seminários, temos que falar da sexualidade. De forma decente, não exibicionista.

Disse numa entrevista, este ano, que os padres também se apaixonam. O que é que um padre faz nessa situação? A primeira reacção é de pânico?

Eu notei que me apaixonava muito frequentemente como jovem padre. Mas tomei uma decisão para a minha vida, e quero manter essa decisão. A primeira coisa a fazer é encontrar formas naturais de lidar com isto. Quando me apaixono por uma jovem, não a devo levar ao cinema. Mas, ao mesmo tempo, posso agradecer a Deus por esse sentimento de amor. Os homens casados também se apaixonam, mas permanecem fiéis à sua esposa, e depois de algum tempo percebem que o amor da sua mulher é o mais importante. Acho que é o mesmo para os padres.

Pessoalmente, na minha oração, pedi sempre a Deus para me dar a sua visão daquela mulher, para que eu possa ver aquela pessoa com os olhos do amor de Deus, e não de desejo. Uma oração muda o coração das pessoas, funcionou sempre comigo. Como dá para ver, ainda estou aqui, e estou feliz!

A Igreja, como outras instituições, vai estar sempre dependente das pessoas que fazem parte dela e das atitudes que elas escolhem. A sinodalidade é a resposta a esta característica humana, pode ajudar a lidar com essas escolhas individuais?

Sim, mas precisa de ser uma sinodalidade de fé. A sinodalidade só é possível se houver oração. Se não rezarmos juntos… Falamos do Espírito Santo como de uma verdade matemática, mas temos que discernir juntos, temos que caminhar juntos. Este aspecto comunitário é importante. Eu acho que as comunidades podem aguentar muito, e ajudam as pessoas. Se um padre estiver numa situação difícil, ele pode falar sobre isso, de forma discreta, e as pessoas podem ajudá-lo, até com as suas orações. Se formos mesmo comunidade, conseguimos sentir a dor das pessoas. Por exemplo, as pessoas que são divorciadas re-casadas não o fazem apenas porque sim, mas sofrem. Durante este processo sinodal, ouvi um testemunho aqui no Luxemburgo sobre estas pessoas, cujo sofrimento foi aumentado pela Igreja e a sua atitude. A Igreja não as ajudou, piorou o problema, o que não é bom. Temos que considerar sempre que Deus ama estas pessoas. Espero mesmo que a misericórdia, como o Papa diz, prevaleça sempre sobre mecanismos de exclusão.

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